Por que separar o lixo é tão difícil?

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Há um ano, iniciei um projeto voluntário para organizar a coleta seletiva de resíduos secos de um evento esportivo, que acontece periodicamente em praias do litoral de São Paulo. Os atletas, amadores e até profissionais, competem em provas de corrida, natação em águas abertas e duathlon. São cerca de mil atletas, que vão à praia com suas famílias e amigos e, como se pode imaginar, toda essa gente gera um volume de resíduo considerável.

Tomei essa iniciativa depois de ver uma atleta jogar um copo plástico na areia de uma ilha, quase embaixo de uma placa que dizia “Área de Preservação Permanente” na região da Barra do Sahy. Mais chocante que a atitude em si, foi a tentativa de justificar a conduta: “qual o problema de jogar no chão se depois alguém vai recolher?”. Conclui, então, que as pessoas até sabem da importância de preservar o meio ambiente, mas não entendem que essa obrigação seja sua.

Embora o artigo 225 da Constituição seja claro ao estabelecer que esta é uma obrigação de todos, os cidadãos, com frequência, tratam o meio ambiente da mesma forma que tratam a coisa pública no Brasil: coisa sem dono. Se as pessoas não se sentem donas do dinheiro público, a ponto de tolerar a corrupção do “rouba, mas faz”, quem dirá do meio ambiente? Eu acredito que esta constatação seja a chave para a entender o problema da preservação ambiental no país que guarda a maior biodiversidade do planeta.

Decidida a não nadar no mar sujo e a não deixar os eventos esportivos que gosto fossem suspensos por conta de infrações ambientais (o que só não ocorreu ainda porque outros vão lá recolher o lixo alheio), procurei quatro organizações de prova diferentes, levando a elas um dossiê sobre responsabilidade ambiental e iniciativas da ONU para preservação de mares e oceanos, esclarecendo que não bastava espalhar lixeiras pela praia, mas, sim, estimular a conscientização do uso do espaço público e limpeza das praias como condição de existência do próprio esporte. Dois organizadores, que já se identificavam muito com a questão ambiental, toparam o desafio e começamos a trabalhar juntos para conscientizar os atletas.

Depois de tentar outros modelos de coleta, nos quais encontrei copos e garrafas cheias d’água jogadas no lixo, frutas dispensadas após apenas uma ou duas mordidas e toda sorte de desperdício, resolvemos, então, reforçar a comunicação visual e sinalizamos com cores diferentes os tambores de lixo orgânico e reciclável, que foram distribuídos aos pares por toda área do evento. Várias vezes, falávamos ao microfone, informando os atletas sobre os tambores para coleta de lixo e sobre a importância de jogar cada tipo de lixo no seu devido lugar.

Apesar disso tudo, o lixo continuou sendo misturado. Tinha muita casca de banana no tambor de recicláveis e muito copo plástico no tambor de lixo orgânico. E então me peguei refletindo: “por que as pessoas não separam o lixo?”, “qual é a dificuldade de fazer algo tão simples?”, “é má vontade ou distração?”, “por que é tão difícil separar o lixo?”.

Procurando respostas, recordei de um artigo escrito por Robert Goodland, principal conselheiro de assuntos ambientais do Banco Mundial, falecido em 2014. No seu texto “The concept of environmental sustainability”[1], ele fala das ações necessárias para se alcançar a sustentabilidade. Como todos sabemos, a sustentabilidade se apoia no tripé meio ambientesocial e econômico; porém, Goodland alertou que não se alcança a sustentabilidade ambiental sem que antes haja sustentabilidade social.

Sociedades socialmente sustentáveis, segundo o autor, são aquelas que têm “capital moral” – ou seja: coesão e identidade cultural (que, para nós, se resume a futebol e à “Lei de Gérson”), diversidade, solidariedade, tolerância, fraternidade, pluralismo, amor, instituições fortes (STF?) e padrões de honestidade, leis e disciplina comumente aceitos (!). Me parece, então, que o Brasil está bem longe de ser socialmente sustentável e, portanto, mais longe ainda de ser sustentável do ponto de vista ambiental.

Mas em que ser socialmente sustentável contribui para a sustentabilidade ambiental?

Como eu disse antes, o meio ambiente no Brasil é tratado como “coisa sem dono”. Teremos mais sucesso quando as pessoas enxergarem que o meio ambiente lhes pertence e que é essencial para a sua qualidade de vida. Isso, porém, é difícil acontecer quando as pessoas estão mais preocupadas com o atendimento de necessidades básicas, como, por exemplo, emprego e saúde.

O sociólogo Herbert de Souza, o Betinho (lembram dele?), em seu livro “Ética e Cidadania”[2] explorava justamente essa relação entre a falta de atendimento de necessidades básicas e o seu impacto negativo no exercício da cidadania. Por exemplo: quem tem fome aceita trocar seu voto por uma cesta básica, simples assim, e não vai se preocupar com ética – nem com meio ambiente – enquanto as suas necessidades essenciais não forem atendidas.

Separar o lixo é difícil porque falta cidadania e não porque as pessoas não sabem diferenciar o que é orgânico do que é reciclável. Elas sabem a diferença; apenas não se importam com isso até que o dano ambiental lhes traga algum prejuízo individual.

Não temos como saber a real razão que levou cada uma das pessoas no evento a separar ou não o lixo, mas essa carência de cidadania já é algo disseminado no inconsciente coletivo dos brasileiros. São, afinal, 500 anos de exploração e é claro que isso influencia a maneira como um povo se vê e vê a coisa pública e coletiva. Vale lembrar também que as pessoas, quando estão em conjunto, agem diferente do fazem quando estão sozinhas. Então, cheguei à conclusão que nossa iniciativa deve se concentrar no coletivo e não em indivíduos (dentro de suas casas, espero eu, as pessoas mantêm um ambiente limpo).

Dizem que o nosso cérebro padroniza comportamentos para economizar energia, por isso, mudar a maneira como as pessoas veem sua relação com o meio ambiente não vai ser fácil. Para conseguir que o lixo seja corretamente separado, teremos, então, um grande desafio adiante, que não se resume apenas à educação ambiental em si, mas ao exercício da cidadania. Como exatamente vamos fazer isso, ainda não sabemos… mas vamos seguir tentando! Por enquanto, já estamos comemorando que, pelo menos, o lixo está misturado nos tambores, mas não está mais na areia.

Letícia Yumi Marques é Especialista em Direito Ambiental (Mackenzie, 2012) e Bacharel em Direito (PUC-SP, 2008). Professora convidada de direito ambiental na COGEAE/PUC-SP e consultora de direito ambiental em Peixoto & Cury Advogados. Voluntária para organização da coleta seletiva de resíduos secos do “Circuito Mares” e do “Desafios Aquaman”. Advogada ambiental.


[1] Goodland, Robert. The concept of environmental sustainability. Annual Review of Ecology and Systematics, vol. 26 (1995), pp. 1-24.

[2] Souza, Hebert de. Ética e cidadania. São Paulo: Moderna, 1994.

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